quinta-feira, 6 de maio de 2010

Confissão

Confesso que contribuí, sem querer, para a extinção das papoilas na área da minha residência. Dantes medravam em alguns renques na berma da via férrea, selvagens e escandalosas no meio do verde, as papoilas. Hoje, não vejo nenhumas; o seu vermelho, e tenho pena. Colhi-as ano após ano e até recolhi as sementes maduras de algumas cápsulas já secas. Consegui semea-las nos vasos que são o meu jardim e brotaram na sua época mas não mais pude recolher sementes maduras e fecundas. Assim se extinguiram aquelas maravilhosas flores, delicadas como asas de borboletas. Assim se vão extinguindo, graças a gestos quase inocentes, um pouco por todo o lado, criaturas maravilhosas que povoam todos os lugares desta preciosa Terra. Como hei-de reparar o que fiz?Ainda não sei. Fico-me com esta lição.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

As Horas

Bom Deus... como pesam " As Horas".
Michael Cunningham ficciona os últimos dias de Virgínia Wolf e começa logo com o seu suicídio.
Guardo mal na memória essa cena em que Nicole Kidmman mergulha nas águas, no filme homónimo que não me recordo de ver todo, não sei porquê . Michael ficciona até ao fim a história de Mrs. Dalloway, que parece o texto que Virgínia tentava escrever, já perto do seu fim. Mrs Dalloway que Virgínia decidiu não sacrificar à morte apesar do sufoco da rotina comesinha que a afligia, tanto a ela como às outras personagens, escolhendo antes Ricchard, corrompido pela sida, ele, que afinal é Richie, filho de Laura Brown e só o percebo nas últimas páginas. Laura podia ser contemporânea de outra mulher; Silvia Plath, insatisfeita e mais consequente, pois foi capaz de escolher o caminho enviesado do suicídio, se Laura Brown não fosse ficção.
Li sobre três gerações consecutivas de mulheres, produtos de épocas diferentes e senti as suas metamorfoses, desde o casamento convencional insatisfatório, porque Virgínia, tal como Laura, não cabia em si nem suportava o seu estado psíquico realmente passivel de ser diagnosticado a nível psiquiátrico, pois há quem realmente ouça vozes na sua mente. Não havia afecto que as reconciliasse com a vida, nem o de Richie, que pressentia o constante alheamento de Laura que o desamparava íntimamente. Laura que queria um bolo que era um mundo, que fosse perfeito. Laura que sobreviveu a ambos os filhos; uma experiência idesejável e atroz para qualquer ser humano.
Lembro-me de um dia ter ficado admirado com a idade de uma senhora antiga, observando-lhe que tinha muito que contar sobre a vida, que é também história,e ela rectificou a minha insensatez dizendo-me justamente que, tendo muito que contar, tinha sobrevivido a todos os que amara e conhecera. Eis Laura. Laura que ficaria bem, pintada naquele quarto de hotel, por Edward Hooper, que podia , muito bem, também ser seu contemporâneo ; esse pintor de desamparos e solidões urbanas.
E volto a Clarisse Dalloway, a mulher que é de um tempo que é o nosso, um pouco andrógina, que vive uma já longa relação amorosa e lésbica com Sally e tem Júlia, sua filha; ilustrando uma nova relação de parentalidade, bem moderna.
Quase esquecia a cena em que Clarisse julga ver, espreitando de uma roulote, num lugar de filmagens, Merryl Streep (julgo ter escrito bem), nem mais nem menos que a actriz que representa Mrs. Dalloway no filme homónimo e em que Ed Harris representa Richard.
" As Horas " é um livro cru, que emana de si um grande vazio existencial que erude as personagens. E doi. Diria que chega a emocionar, sobretudo a desistência e queda de Richard apesar de todos os afectuosos apelos de Clarisse, a edificadora de utopias; a sobrevivente. E imagino a angústia dela confrontada com a iminência do desastre, atormentada e incrédula. Por causa de Merryl Streep/ Clarissa, não resisto a recordar a personagem de Sofia e o seu conflito atroz e interior, quando tem que escolher qual dos filhos deve sacrificar à morte para que o outro... afinal... não se salve, também, em: " A Escolha De Sofia". Quase descubro um mesmo grau de conflito interno nas duas situações, mesmo que os níveis de dor sejam incomparáveis.
Michael Cunningham fez-me sofrer e revolveu-me a memória dos deseperados vazios. Tinha que vos dizer isto.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Fazes-me Falta

Acabei de ler " Fazes-me Falta ", de Inês Pedrosa. Parece-me um longo e partilhado acto de contrição articulado entre duas personagens: uma que vive na eternidade que se faz de memória e outra que a recorda ao longo do seu existir terreno. Assisti à elaboração de um luto permanentemente bloqueado pelas recordações recalcadas. É uma ficção repleta de belas frazes e metáforas, onde o afecto, mais que o amor; é uma atmosfera.
Talvez por razões pessoais, custou-me ler este livro. Enxertei no meio da leitura, Luisa Dacosta, Camille Paglia e até António Variações, talvez para fugir à melancolia e à solidão imanente. Levou-me um tempo infinito a completar a viagem por dentro da dor. Custou-me a entender o dilema do "não querer mais que bem querer", comum às duas personae. E há aquela persistente teimosia em sobreviver ao esquecimento que é a eternidade... .
Talvez o doloroso e prolongado adeus tenha durado demasiadas páginas.
A vida de um homem vista do céu... vigiada afectuosamente por uma mulher incorpórea que, em vida, um dia o amou (custa-me tanto dizer esta palavra...).
Eu, que já comecei a ler outro livro ( As Horas ), dou comigo a adaptar-me a uma ficção muito mais pobre em imagens, seca, urbana, e com uma estrutura muito diferente, tenho que elogiar o livro de Inês, que parece um pouco camiliano e ultraromântico mas não muito.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Violència Doméstica

Há alguns dias assisti a um colóquio sobre a violência sofrida pelas mulheres. Fiquei desde logo desapontado pela imposição de tempos limite para as intervenções e , desde logo, de toda a sessão. Longe vão os tempos em que as pessoas não se impunham limites para a reflexão. Esta atitude algum significado terá na actualidade e não é inocente.

Como sempre acontece em assuntos de foro semelhante, valorizou-se a vertente eficaz e punitiva da legislação que tem vindo a implementar-se. Não nego a importância do enquadramento jurídico, mas não se disfarça o pendor opressivo da orientação da governação do Estado e dos poderes. Quero dizer: reprimir em vez de prevenir.

Tenho que dizer desde já, que, ao contrário do que nem se diz, toda a mulher é poderosa, graças a todos os Deuses.

Digo também que , no processo da violência doméstica, quase nunca há inocentes (exceptuemos os filhos) e todo o seu processo deve ser analisado a montante. Era desejável que nenhum homem se prestasse a ser o vilão, nesta questão da vida comum, em que os parceiros tanto se condicionam mútuamente. Que nenhum homem seja violento para com a companheira, nem que tenha acumulado secretas desrrazões para agir de outro modo. Nenhum de nós se livra de ser violento em alguma circunstância. Afinal somos todos uma espécie de heróis num campo de batalha cada vez mais cruel e hostil. E isso é escamoteado.

Os nossos milhões de pobres correm o risco de se tornarem violentos por força da sua penúria. Os nossos desempregados, que se contam pelas centenas de milhares, arriscam a depressão e acessos de violência. A nossa juventude, cultivada num caldo consumista e insensato, é propensa a adoptar comportamentos agressivos porque tem pressa de ter em vez de ter vontade de ser.

Temos que ter em conta os frequentes equivocos em que se vive a afectividade, seja nos adultos, seja nos adolescentes,seja nas crianças.

Quantos de nós não bebemos os afectos de fontes inquinadas?

Quantos de nós seguimos modelos afectivos, mais que imperfeitos; perversos?

Quantos de nós sabem da subjectividade de amar?

Nesta sociedade em que vivemos, conseguimos ser equilibrados e conseguimos amar?

Quantas vezes sublimamos os atentados diários aos nossos direitos humanos em violência?

Aprendi que, os heróis que somos, se assemelham aos heróis gregos, que, sendo vítimas, eram também, por opções caracterológicas, responsáveis pelo seu destino funesto. É isso que acontece connosco; homens e mulheres deste país onde os cravos murcharam precocemente.

Pede-se às mulheres que sejam corajosas e insubmissas, sempre num propósito nobre, sabendo que há um preço e um risco.
Pede-se a paridade de salários e igualdade de oportunidade de trabalho.
Sabe-se que há homens e mulheres desiquilibrados; que resvalaram para o precipício, empurrados sabe-se lá por que causas. Há que resistir-lhes; afirmar perante eles o nosso, o vosso ego de mulheres, sabendo que o próprio ego pode atraiçoar e afastar-vos do caminho claro e do bom senso.
Dou um exemplo:
Um dia, à noite, um homem foi abordado por outro a quem tinha morrido o pai. Sofria. Confessou ter vontade de bater em alguém. O homem que o escutou imaginou que o outro seguisse o impulso e lhe fosse bater. Felizmente tal não aconteceu, muito devido à conversa que tiveram. Isto que contei vale por dizer que há homens que são violentos por um nada aparente.
Não sejam masoquistas; a primeira violência é já um mau indício comportamental.
É preciso resistir ao medo. É preciso desenvolver a capacidade de VER para lá das aparências.
Mulheres do meu país, afirmai-vos. Que os constrangimentos económicos, os filhos, os companheiros ou os amantes, não consigam impedir-vos de SEREM, autêntica e justamente. Que , no meio de tanta reivindicação paritária não exibam os defeitos dos homens contra os quais dizem bater-se. Lamentávelmente, apreciando as intervenções e atitudes das mulheres que ouvi, fiquei com impressão de que no coração delas não havia lugar para um homem. É pena.
Que a justiça e a punição sejam o último recurso da Humanidade.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

arquitectura luminosa

Estou preocupado com o que possa ser feito no Mercado do Bom Sucesso. Quem já lá entrou em Setembro e pôde à tarde ser banhado pela luz oblíqua que penetra toda a fachada envidraçada daquele edifício precioso ? Que farão daquela casa ?
Parece-me que estamos todos distraidos e quando algo de indesejável acontecer seremos surpreendidos. É pena que corramos esse risco.
Também no Bolhão, parece-me que se deveria manter a traça original e até respeitar a forma e estilo daquelas barraquinhas centrais em madeira e com os seus pequenos telhados de xisto. Talvez só assim se preserve a memória e a beleza do lugar emblemático. preservar sem mudar muito parece-me o lema desejável.