quarta-feira, 5 de maio de 2010

As Horas

Bom Deus... como pesam " As Horas".
Michael Cunningham ficciona os últimos dias de Virgínia Wolf e começa logo com o seu suicídio.
Guardo mal na memória essa cena em que Nicole Kidmman mergulha nas águas, no filme homónimo que não me recordo de ver todo, não sei porquê . Michael ficciona até ao fim a história de Mrs. Dalloway, que parece o texto que Virgínia tentava escrever, já perto do seu fim. Mrs Dalloway que Virgínia decidiu não sacrificar à morte apesar do sufoco da rotina comesinha que a afligia, tanto a ela como às outras personagens, escolhendo antes Ricchard, corrompido pela sida, ele, que afinal é Richie, filho de Laura Brown e só o percebo nas últimas páginas. Laura podia ser contemporânea de outra mulher; Silvia Plath, insatisfeita e mais consequente, pois foi capaz de escolher o caminho enviesado do suicídio, se Laura Brown não fosse ficção.
Li sobre três gerações consecutivas de mulheres, produtos de épocas diferentes e senti as suas metamorfoses, desde o casamento convencional insatisfatório, porque Virgínia, tal como Laura, não cabia em si nem suportava o seu estado psíquico realmente passivel de ser diagnosticado a nível psiquiátrico, pois há quem realmente ouça vozes na sua mente. Não havia afecto que as reconciliasse com a vida, nem o de Richie, que pressentia o constante alheamento de Laura que o desamparava íntimamente. Laura que queria um bolo que era um mundo, que fosse perfeito. Laura que sobreviveu a ambos os filhos; uma experiência idesejável e atroz para qualquer ser humano.
Lembro-me de um dia ter ficado admirado com a idade de uma senhora antiga, observando-lhe que tinha muito que contar sobre a vida, que é também história,e ela rectificou a minha insensatez dizendo-me justamente que, tendo muito que contar, tinha sobrevivido a todos os que amara e conhecera. Eis Laura. Laura que ficaria bem, pintada naquele quarto de hotel, por Edward Hooper, que podia , muito bem, também ser seu contemporâneo ; esse pintor de desamparos e solidões urbanas.
E volto a Clarisse Dalloway, a mulher que é de um tempo que é o nosso, um pouco andrógina, que vive uma já longa relação amorosa e lésbica com Sally e tem Júlia, sua filha; ilustrando uma nova relação de parentalidade, bem moderna.
Quase esquecia a cena em que Clarisse julga ver, espreitando de uma roulote, num lugar de filmagens, Merryl Streep (julgo ter escrito bem), nem mais nem menos que a actriz que representa Mrs. Dalloway no filme homónimo e em que Ed Harris representa Richard.
" As Horas " é um livro cru, que emana de si um grande vazio existencial que erude as personagens. E doi. Diria que chega a emocionar, sobretudo a desistência e queda de Richard apesar de todos os afectuosos apelos de Clarisse, a edificadora de utopias; a sobrevivente. E imagino a angústia dela confrontada com a iminência do desastre, atormentada e incrédula. Por causa de Merryl Streep/ Clarissa, não resisto a recordar a personagem de Sofia e o seu conflito atroz e interior, quando tem que escolher qual dos filhos deve sacrificar à morte para que o outro... afinal... não se salve, também, em: " A Escolha De Sofia". Quase descubro um mesmo grau de conflito interno nas duas situações, mesmo que os níveis de dor sejam incomparáveis.
Michael Cunningham fez-me sofrer e revolveu-me a memória dos deseperados vazios. Tinha que vos dizer isto.

2 comentários:

  1. É isso, como pesam as Horas. Excelente abordagem ao livro e ao filme e, melhor ainda, belíssimo cruzamento entre ambas as leituras. Gosto muito das suas reflexões, António.

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  2. Fico feliz pelo seu gentil juizo. Lamento ter errado na escrita do nome de Virgínia; é Woolf, tem mais um o e esqueci-me disso. Cá continuo a ler o " Jardins Secretos". Tudo de Bom para si.

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